sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A mota que sonhei a mota que comprei

A minha efémera passagem pelas duas rodas ocorreu em Macau, tinha eu 22 anos. Tinha lá chegado há apenas um ano e vivia com alguma intensidade e entusiasmo muito do que aquele território oferecia: exotismo, um oriente acessível, um Portugal no oriente, novas aventuras gastronómicas, uma porta para a Ásia, a possibilidade de se idealizar e logo concretizar e, claro, dinheiro relativamente fácil de ganhar.

Recordo que tudo começou num sonho. Num intenso e saboroso sonho com uma vespa. De manhã peguei no meu primo, que viveu uns tempos em minha casa, e partimos rumo ao stand mais próximo. E lá estavam umas vespas, lindíssimas. Olhei, apreciei, e fui caminhando pelo pequeno estabelecimento. É então que deparo com uma Kawasaki ZZR 600. Um motão, azul e cinza, com um imenso farol à frente e um banco preto corrido. Duzentos e setenta quilómetros de velocidade máxima e 5,7 segundos dos zero aos 100. Aquilo sim, era uma máquina. Após umas sábias trocas de opinião com o meu primo que, tal como eu, também nunca tinha andado de mota, tomei a decisão óbvia: levar a ZZR 600. Tratei do pagamento e com a ajuda do lojista coloquei a mota cá fora, à porta do stand. Algo me deixou de imediato desconfortável: a sacana tinha mudanças de pedal. Nada de mudanças de mão, como as vespas que eu conhecia. Mas Macau era assim, e nós já tínhamos imbuído que tudo se resolvia. E resolveu. Telefonei ao meu tio, que trabalhava ali próximo e também tinha uma mota, e ele garantiu-me que passava por ali daí a uns minutos, para eu não me preocupar. Descansei e esperei. O lojista achou estranho, eu e o meu primo ali sentados no passeio, ao lado da mota acabadinha de comprar. Mas eu disfarcei, e disse-lhe que me tinha esquecido da carta de condução. Foi então que me deparei com outro problema – é que eu não tinha carta de condução. Mas o meu primo tranquilizou-me: já tens o mais difícil e caro, a mota. Deixa que logo tiras a carta. E era verdade: quantos jovens de 21 anos sonham com uma vespa e compram uma 600? Normalmente é ao contrário. E quantos têm carta de condução? De facto, eu já tinha o mais difícil. Voltei a tranquilizar-me. Caramba, tinha acabado de comprar uma 600, não podia continuar naquele desassossego.

Depois de umas voltas com o meu tio numas ruas atrás da casa dele, na ilha da Taipa, tomei rapidamente a mão e o pé à mota. E durante mais de um ano gozei aquele motão. Claro que nunca passava dos 60 ou 70 quilómetros hora. Afinal estava em Macau. Ruas apertadas, um trânsito infernal, tudo o que não faz falta a uma 600. Mas quando ia às ilhas desforrava-me e lá chegava aos 160, 170. Entretanto, como ganhava bem tomei o gosto aos blazers. Caiam-me bem. Tinha-os de várias cores, do vermelho ao azul claro. Algo que ao vento numa mota, quando desapertado, dava um efeito estranho aos olhos de terceiros, tipo vela, algo que só percebi quando uma amiga minha, a Cláudia, já desesperada, me fotografou e com um ar esperançado atirou: «Vês, é isto, é isto que te dizia, é assim que andas por aí em Macau». Percebi, reconheci que não era o melhor estilo, mas continuei; um blazer é sempre um blazer, mesmo a esvoaçar numa mota, pensei. Mas não andei por muito tempo. Uma noite, depois de uma festa, mandaram-me parar numa operação auto-stop. Até então, sempre que o faziam, eu respondia prontamente que tinha a carta em casa e mandavam-me seguir. Apanhava sempre polícias chineses, que desejavam tudo menos agitações linguísticas. Naquele dia à minha frente estava um macaense, daqueles chatos que gostam de demonstrar que dominam a língua portuguesa. Azar. Nada a fazer. Até porque a Cláudia, que ia atrás na mota, também não ajudava nada, com o capacete numa mão e uma Jonnhie Walker Black Label na outra. E ainda por cima teimava em falar, em dizer qualquer coisa que ninguém percebia, agitando a garrafa. Dois dias depois estava no Tribunal, em frente ao Juiz. Lá se foi a mota em Macau, pensei, esquecendo momentaneamente o que era Macau. Eis então que o Juiz, com um sorriso entre o complacente e o reprovador, me diz: «você é o Miguel Correia jornalista no jornal Comércio de Macau?». Respondi que sim, que era. «Bem, sabe que para andar de mota é preciso carta. Mas eu até gosto dos seus textos. Vá-se lá embora mas garanta-me que tira a carta». Eu lá garantir garanti, mas não tirei. Uns meses depois estava a caminho de Portugal, de vez. Tinha decidido terminar a minha aventura asiática com uma volta de uns quantos meses pela Ásia e Europa. Macau era assim…

Nunca mais andei de mota, até o meu tio, já em Portugal e 20 anos depois, me empurrar há uns meses para umas voltas numa vespa dele. A vespa que nunca tive e com a qual um dia sonhei. E na qual finalmente andei.

PS: dizer apenas que quem me comprou a 600 em Macau seguiu em frente, uns meses depois, numa curva no Altinho de Coloane. A mota foi-se e ele partiu as duas pernas. Quanto a mim, nunca aquela Kawasaki me atirou ao chão.


MC


3 comentários:

  1. você não é o Miguel Correia? Trabalhei como fotógrafo no CM, sou o Pedro

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  2. Olá Pedro. Quem diria que quase 20 anos depois nos voltaríamos a "encontrar". Penso que também tinhas uma mota, não?
    Miguel

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  3. sim, era uma kawasaki. Por onde andas e que fazes?

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